quinta-feira, março 10, 2016

Ecopista Guimarães – Fafe: longe da vista, longe do viajante

Este artigo faz parte de um conjunto de textos sobre as Ecopistas de Portugal – projecto para o desenvolvimento de caminhos para bicicletas e peões através do aproveitamento de linhas ferroviárias desactivadas – servindo como base para uma análise mais aprofundada do potencial destas infraestruturas. Discute-se o seu uso do ponto de vista da bicicleta e não ferroviário.

Casas, campos agrícolas e um acesso privilegiado

Chegando à estação de comboios de Guimarães, esperava encontrar algum vestígio da linha que até 1986 dali partia em direcção a Fafe. A estação fora entretanto substituída por uma nova, construída mais à frente, terminando agora numa parede de betão atrás da qual um parque de estacionamento automóvel e uma rotunda separam a moderna infra-estrutura de um terreno verde de erva pujante, onde só a ausência de edifícios deixa imaginar que por ali, em tempos, terá passado um comboio.

A Ecopista de Guimarães faz parte do Plano Nacional de Ecopistas criado em 2001 pela então REFER Património, gestora da rede ferroviária, agora denominada IP Património. O plano foi criado “tendo em vista a requalificação e reutilização das linhas e canais ferroviários sem exploração”, pode ler-se no site da empresa, onde o trajecto entre Guimarães e Fafe é anunciado como parcialmente concluído – de um total de 21 quilómetros, pouco mais de 14 estão finalizados.

Entrada pelas traseiras


No posto de turismo da cidade que foi a primeira capital do país explica-se como chegar ao local onde a via começa. Os mapas disponíveis para oferecer aos visitantes estão circunscritos a uma zona mais central da cidade e o guia precisou de recorrer a um exercício de imaginação para me ilustrar o que faltava do caminho. Perguntei o que tinha acontecido à parte da linha que saía da estação e atravessava a cidade antes de começar a subida à Penha. “Já não existe”, foi a resposta dada num tom simpático, como é tudo aqui.

A Penha é o nome do monte que os primeiros quatro quilómetros de linha serpenteavam para alcançar o seu topo, cerca de 150 metros acima da estação, deixando para trás a cidade e, ao mesmo tempo, proporcionando uma vista panorâmica sobre ela. Um artigo publicado na revista Ilustração Portugueza aquando da inauguração da linha em 1907, dá conta do que se podia observar à época:

Sae esta nova linha da estação de Guimarães agarrando-se ao magestoso monte da Penha, encimado com a estatua de Pio IX e um pittoresco hotel, e, durante quatro kilometros, sempre subindo, vae-nos mostrando soberbos panoramas que se estendem desde a cidade de Guimarães até às alturas do Sameiro. Rodeado um contraforte do monte da Penha, entra-se então no extensissimo valle de S. Torquato.
Vista para o Vale de São Torcato

Hoje, este troço do percurso faz-se por uma alternativa menos sonante, a antiga Estrada Nacional 101, que foi transformada nas ruas Padre António Caldas e da Cruz da Argola depois de construída a sua variante. Tem a vantagem de encurtar a distância e os senões de ser mais íngreme e de ter trânsito motorizado pouco afeito à partilha com ciclistas. A vista até pode ser boa mas a falta de sinalização que indique o início da ecopista e o movimento rodoviário constante convidam pouco à contemplação. A primeira indicação da “pista de cicloturismo” aparece somente para assinalar a saída desta estrada, voltando a surgir a partir daqui sempre que é necessário mudar de direcção. Quando em recta, mesmo passando por rotundas e outras junções, não há qualquer placa indicativa, o que só aumenta a ansiedade do ciclista durante a subida... ter-me-ei enganado no caminho?

É nas traseiras de uma fábrica do sector têxtil que se entra na ecopista, assinalada com um pórtico metálico de dimensão um tanto ou quanto exagerada, como que tentando devolver o prestígio a algo importante, sem dúvida, que porém se esconde nas traseiras de uma fábrica. Rapidamente se esquece tudo isto quando se olha para o vale que preenche a paisagem à esquerda.

Chamar-lhe “pista” adequa-se, mas não devia


A construção desta linha de comboio tornou-se viável financeiramente após uma revisão do traçado que permitiu eliminar dois túneis inicialmente previstos. O plano nunca concretizado era, a partir de Fafe, fazer a ligação com as linhas do Tâmega e do Corgo, aproximando o Minho e Trás-os-Montes, até à cidade de Chaves.

Após o encerramento do serviço ferroviário, a Câmara Municipal de Fafe foi a primeira a converter o canal em pista de cicloturismo, como lhe chamam na placa que assinala a sua inauguração em 1996. Seguiu-se-lhe o município de Guimarães, três anos depois, que a completou até ao local onde ainda hoje principia.

Em bom estado de conservação está o asfalto, que é acompanhado por uma linha branca que percorre todo o trajecto, um traço continuo que dificilmente cumpre a função de proibir a transposição da via de circulação porque, numa faixa com estas características, tal regra é desnecessária e até contraditória desde logo porque é partilhada por ciclistas e peões, recomendando ultrapassagens com alguma distância lateral. Uma despesa em tinta que poderia ser poupada sem que a segurança dos utilizadores fosse afectada.

Nalguns troços vemos rails de protecção lateral iguais aos das autoestradas, estes sim uma ameaça à segurança dos ciclistas. O que é bom para os automobilistas, como estes são, pode transmitir uma falsa sensação de segurança a quem tem o corpo exposto em caso de embate ou queda e estes rails, que deveriam ser almofadas, são antes facas sem gume.

Rail de protecção lateral e pórtico
Cruzamento com uma estrada











Um trabalho realizado pela Universidade do Minho em 2001 aponta todos estes pormenores, colocando a tónica na segurança dos ciclistas e na sua fruição do percurso – aspectos que se interligam, obtendo-se um por via do outro. No artigo são referidas medidas que permitiriam transformar este canal num verdadeiro corredor verde, o que, apesar de algumas melhorias, ainda está por concretizar. Percebe-se que a escolha das protecções laterais teve como principal preocupação impedir o acesso de veículos motorizados à ecopista mas, conspicuamente, todos os equipamentos obedecem a uma linguagem rodoviária e não de ciclovia, como também é notado nesta passagem:

Estes elementos estruturantes (...) não devem reflectir o aspecto, dimensões, ou tipo de material usados standardizadamente nas estradas. Deve-se implementar uma imagem própria à ciclovia (...). A título de exemplo, as velocidades inerentes a velocípedes justificam sinais de menores dimensões, que não têm que ser de tão rápida percepção como a sinalização de estrada.

Tudo isto se torna pouco importante quando se olha em volta a vista imensa. É, todavia, justamente esse o motivo que deve orientar a escolha de soluções, permitindo uma distracção segura e desejável em vez de iludir na segurança ou fantasiar com estradas como as dos automóveis, como se as vias para bicicletas fossem uma brincadeira infanto-juvenil. Nunca foram.

Estação de Paçô Vieira, concelho de Guimarães
Estação de Cepães, com esplanada, concelho de Fafe











O que pode ser melhorado


A remeter para algum outro imaginário que não o de uma via para ciclistas e peões, a ecopista deverá valorizar o património ferroviário e relembrar ao viajante a história deste canal e o porquê dele existir. Dificilmente se cortariam montanhas e fariam taludes, túneis e pontes como aqui se fosse para criar de raiz um corredor verde. Esta via e o seu suave declive existem porque em tempos passaram por aqui comboios fumegantes.

Ciclovia do Parque da Cidade, Fafe
Contudo, para dar maior coerência a esta via, é necessário prolongá-la em ambos os sentidos. Se em Fafe a ecopista já tem continuação através de uma ciclovia que convida a entrar na cidade, penetrando no parque verde até chegar a uma praça central, poderia daí continuar cumprindo o projecto original de ligar a Chaves e aproximar o Minho e Trás-os-Montes.

Do lado de Guimarães, duas opções estratégicas: prolongar a pista até à estação de comboios pelo troço original e, enquanto isso não é feito, melhorar a sinalização a partir do centro da cidade. Vamos por partes.

A primeira impressão com que se fica, olhando para o edificado, é que o canal ferroviário foi ocupado pela expansão urbana, o que também é sugerido pela demolição de um antigo apeadeiro nesta zona. Felizmente, olhando atentamente para a vista de satélite e confrontando-a com um antigo mapa, percebe-se que o corredor permanece livre, nuns casos abandonado às ervas, noutros transformado em arruamentos, como é o caso da Avenida Rio de Janeiro. A engenharia do início do século XX tem tudo para poder voltar ao serviço, proporcionando agora uma suave subida aos ciclistas.

O troço entre a estação e o início da ecopista em Guimarães, a tracejado. Fonte

De acordo com as normas de sinalização vertical, uma placa cor-de-laranja, como a que indica a pista de cicloturismo, refere-se a equipamentos desportivos e estes, normalmente, existem num lugar concreto, como um hipódromo, um autódromo ou um ringue de patinagem. Contrariamente a esses equipamentos, esta pista de cicloturismo une duas cidades por meio de uma via sem tráfego motorizado e isso deveria estar inscrito na sinalética, com outra cor de fundo e, sobretudo, contendo a informação da localidade para onde segue e a respectiva distância, fundamental para quem se desloca de bicicleta.

Uma humilde sugestão gráfica do que pode estar inserido na sinalética

Enquanto esta pista for tratada como um equipamento desportivo e não como uma via de circulação, ficará por explorar o potencial turístico e patrimonial que a Ecopista Guimarães – Fafe em si contém. Ligá-la à estação de comboios trará mais visitantes, desde que devidamente anunciada e sinalizada, na estrada e nos mapas. Continuá-la de Fafe até Chaves, através de um corredor verde, deve ser visto como um investimento estratégico e o corolário de uma ideia com mais de 100 anos.


 
A última viagem do comboio

 A ecopista actualmente

Sem comentários: