quinta-feira, fevereiro 23, 2017

O efeito moralizante da ciclovia bi-direccional na Avenida da República

Numa avenida larga, a vantagem de concentrar os ciclistas num único canal está em aumentar a sensação de fluxo constante de bicicletas, que de outro modo estariam dispersas pelos 60 metros que separam as fachadas nascente e poente da Avenida da República.


Caso restassem dúvidas da existência de ciclistas a circular em dias úteis e a horas de ponta na cidade de Lisboa, argumento que foi ensaiado recentemente por um partido político, a nova ciclovia da Avenida da República veio ajudar a dissipá-las. É consensual entre especialistas em mobilidade suave a ideia de que a construção de vias para bicicletas contribui decisivamente para o aumento do número de ciclistas, o que é corroborado pelos números registados antes e depois de obras feitas em várias cidades do mundo.

No entanto, esse aumento dependerá ainda de factores complementares como são a continuidade e interligação da ciclovia, a qualidade da construção da mesma e, por fim mas não em último, a mais-valia que a nova via traz às alternativas previamente existentes. É sobre este último ponto que a seguir se discorre, pois é esse um dos sucessos já revelados da nova ciclovia da República.

A Câmara Municipal de Lisboa (CML) tem optado quase exclusivamente pela construção de um tipo de ciclovia, a chamada bi-direccional, que concentra no mesmo canal os dois sentidos de trânsito. O projecto inicial da CML para a Avenida da República incluía, na verdade, duas ciclovias uni-direccionais situadas juntos às antigas vias laterais da avenida, o que seria uma novidade. No entanto, a pressão dos moradores para que se mantivessem lugares de estacionamento automóvel, expressa em consulta pública, levou à revisão do projecto e à eliminação da ciclovia nascente, sentido sul-norte, concentrando os dois sentidos na ciclovia poente.

Esta opção poderá ter sido a melhor resposta às críticas que se têm ouvido sobre a baixa utilização das ciclovias ou o reduzido número de ciclistas que, alega-se, não justifica o investimento feito. É justamente o contrário que acontece – se as constróis, eles aparecem.

Criou-se a ciclovia, foram (quase) todos para lá.

A intervenção na avenida incluiu também a reconversão e alargamento dos passeios e a eliminação da continuidade das vias laterais, onde antes circulava a maioria dos ciclistas juntamente com o trânsito automóvel. Ao fazê-lo, os ciclistas deixaram de poder contar com o espaço a que recorriam antes da obra e viram-se obrigados a circular na nova ciclovia para atravessar a totalidade da avenida, sem drásticas interrupções na via.


Assim, tanto do lado nascente como poente, a ciclovia tornou-se “forçosamente” o canal mais interessante para os ciclistas, uma vez que as alternativas não são tão confortáveis. Além de eliminada a continuidade das vias laterais, estas estão agora menos largas e não permitem ultrapassagens carro-bicicleta com uma distância segura. O sucesso da nova ciclovia depende em parte deste factor – eliminar as redundâncias tornando as alternativas significativamente menos apelativas para os ciclistas.

Antes desta obra, as avenidas que ladeiam paralelamente a da República, a 5 de Outubro e a Defensores de Chaves, poderiam até ser boas alternativas ao eixo central nalguns percursos e para alguns ciclistas. Com a alteração dos padrões de conforto agora introduzidos na Avenida da República, é expectável que esta atraia algum do tráfego ciclável das avenidas adjacentes.

Tudo somado, são muitas as bicicletas que já se contam na via inaugurada há apenas um mês.

A percepção é boa. E os números?

Esta semana, na quarta-feira dia 22 de Fevereiro, foi feita uma contagem e recolhidas imagens entre as 8h30 e as 10h30 da manhã no cruzamento das ciclovias da Avenida Duque d’Avila e Avenida da República – provavelmente o primeiro cruzamento relevante deste tipo de vias em Lisboa. Nessas duas horas foram contados 174 ciclistas, entre homens e mulheres.


No vídeo publicado é perceptível um maior número de ciclistas a circular na Avenida da República do que na Duque d’Ávila, sobretudo no sentido norte-sul, o que é coerente com o movimento periferia-centro que ocorre no período de ponta matinal. Isto significa, como aliás as imagens o ilustram, que se trata na sua grande maioria de ciclistas em rota para o trabalho e não em lazer. As bicicletas que se vêem são variadas, entre citadinas e modelos mais desportivos. Há ainda dois skaters, um monociclo eléctrico e alguns pais com crianças.

 
Entre as 8h30 e as 9h30 foram contados 96 ciclistas, lê-se na descrição do vídeo, e os restantes 78 no período das 9h30 às 10h30. Não seria necessário contá-los para constatar que se vêem mais bicicletas agora a passar na Avenida da República, talvez fruto dessa maior concentração de ciclistas que antes circulavam dispersos pelas antigas laterais e avenidas contíguas. Mas contar ciclistas é fundamental e deve ser uma prioridade de todos os interessados em promover a mobilidade em bicicleta.

A CML tem responsabilidades e poderes acrescidos para poder encetar um programa de contagens pelas ruas e ciclovias da cidade e será actualmente o órgão mais interessado em mostrar os resultados (positivos, é certo) da sua obra. Esses dados devem ser públicos e serão, seguramente, a melhor resposta às críticas pouco fundamentadas ao investimento na rede de ciclovias que se têm feito ouvir.

Obrigado à Rosa Félix, autora do vídeo.

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