segunda-feira, setembro 24, 2012

Anda mais a pé

Texto originalmente publicado no Jornal Pedal nº 6, de Junho/Julho 2012. A edição de Setembro já está online e a circular pelas ruas. Jornal Pedal, agora também disponível em t-shirts.
 
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Os meus amigos ciclistas ficam surpreendidos quando lhes digo que vou a pé para algum lado. Parece-lhes estranho, nalguns casos mesmo descabido. Tento explicar-lhes que tem as suas vantagens. Dizem-me “para quê perder tempo se podes ir mais depressa de bicicleta?” numa primeira fase de choque e espanto, avançando depois para comentários mais jocosos. “Não tens pedalada” é talvez o meu preferido, por ser gratuitamente óbvio.

Gosto de andar a pé, é um facto. Sempre gostei mas só recentemente me vi confrontado com a necessidade de justificar esta opção de transporte – aliás, chamar-lhe “opção de transporte” é já de si uma justificação para uma coisa tão simples que não devia precisar de explicações, quanto mais ser defendida. Percebo que se possa achar fascinante que o ser humano seja o único primata bípede e se discutam as possíveis razões evolutivas que nos trouxeram até aqui. Agora, questionar o uso dessa faculdade que se adquire aos 12 meses de vida como se fosse um atavismo cultural já me parece excessivo. Um bêbado que não consegue andar é normal. Um sóbrio que anda, é uma extravagância.

Entre piadas e estupefacções, dei por mim a fazer exercícios de retórica numa tentativa de normalizar o meu comportamento, desviante aos olhos dos ciclistas. O que percebi é que nada mudou no mundo tirando, talvez, a forma como nos deslocamos. Senão reparem, quando tenho que justificar o andar a pé, os meus argumentos são os mesmos que qualquer ciclista aponta a um automobilista: é um meio de transporte muito ecológico porque, além de não produzir emissões de CO2, não contribui para uma indústria poluente como a das bicicletas – que implica a produção de óleos e lubrificantes à base de petróleo e peças feitas a partir de minérios cada vez mais escassos – nem depende (tanto) de bens importados de paragens longínquas e exóticas que aumentam substancialmente a sua pegada ecológica, também conhecida por emissões de CO2, também conhecida por poluição.

Estacionamento é um problema que não existe quando vou a pé porque não tenho que procurar um local visível e uma estrutura robusta para prender a bicicleta, nem saber se o meu cadeado é seguro para determinadas zonas e horas. Estacionamento à porta pode parecer uma ideia brilhante, mas não ter que estacionar de todo é que é. Outra vantagem a reter: intermodalidade com os transportes públicos, horários e condições de acesso? Deixem-me rir.

Depois, há toda uma nova perspectiva da cidade que se adquire, é uma descoberta que se faz como quando se experimenta usar a bicicleta numa base regular. Novos percursos, melhores caminhos com piso mais agradável, passeios mais largos...a lista de preferências é infinda. Para mim a grande diferença está na velocidade a que a cidade passa por nós e no que ela me permite apreender. Deslocando-me mais devagar, consigo descobrir novos restaurantes e lojas mais depressa do que a “Time Out”.

Menos é mais. E numa lógica de transporte pós-rodinhas tudo se torna mais relaxado. Andar de bicicleta é fixe e dá-nos uma sensação de adrenalina que, a pé, é substituída por uma calma que nos permite pensar, seja no que for. Quem vai de bicicleta tem que estar atento ao trânsito (chato), aos carros (chatos) e aos peões (lentos) que se atravessam sem aviso, sem olhar para os ciclistas. Agora compreendo-os. Eles estão ocupados a pensar em coisas muito mais importantes do que nas bicicletas. Estão a pensar na vida, na sua e na dos outros, nas bolas do vestido da rapariga que atravessa e em como ficarão vistas do avesso.

Mas a minha vida não mudou e tão-pouco deixei de andar de bicicleta. Nada disso. Passei apenas, isso sim, a fazê-lo quando estou com pressa. Experimentem! Não perdem nada, nem tempo. Vão ver que pelo caminho vos surgem ideias brilhantes, nem que seja para criticar este texto.

7 comentários:

miguel disse...

Ricardo,
há uma coisa que eu detesto no carro... e que infelizmente a bicicleta também tem: ter de voltar para trás onde ela/ela está estacionado.
Se vais dar um passeio na Baixa, não podes decidir de repente voltar por um caminho diferente, tomar um percurso diferente do originalmente, não te podes meter no metro para ir a outro sítio. Tens sempre de voltar atrás para ir buscar o popó ou a bicla, como se fosse uma velhinha que está a teu cargo e que não pode voltar para casa sozinha :)

Ricardo Sobral disse...

"Uma velhinha que está a teu cargo" é muito bom!

Jefferson Aleman disse...

Un cambio global en la mentalidad de la gente y volver a la vida tranquila de hace unos pocos años, hace no tantos... es lo que hace falta de verdad. Saludos desde la Florida!

Mariana Silva disse...

Compreendo perfeitamente o seu ponto de vista. Sempre apreciei a caminhada como meio de deslocação. É simples, natural, nada dispendioso e só faz bem a tudo o que nos rodeia.
Desde cedo habituei-me a passear a pé, a estar em equilíbrio mental para comigo... de certa forma a treinar a minha mente para aprender apreciar a estar comigo mesma e a saber gozar de uma caminhada. Infelizmente é preciso esse "treino" mental e essa força psicológica pois tenho consciência de que andar a pé mais de 1 quilómetro não é socialmente aceitável nos tempos de hoje. Principalmente no período de tempo em que estive desempregada (e, como tal, evitava usar transportes públicos ao máximo) fui variadíssimas vezes confrontada com perguntas relacionadas com o porquê de eu efectuar o meu itinerário a pé... uma coisa tão natural, o simples caminhar, e eu, ali, a esforçar-me por justificar algo básico e vital para o ser humano. Se não fossem as migrações efectuadas pelo ser humano na época pré-histórica, a nossa civilização actual, muito provavelmente não teria existido... mas enfim, é quase inútil esperar compreensão de todas as pessoas que nos questionam, quando a 500 metros da nossa secretária essas pessoas teem o carro estacionado à sua espera.
A tecnologia tem esse lado negativo: apesar de facilitar o quotidiano, principalmente numa época tão azafamada como a de hoje, penso que anestesia um pouco o lado crítico dos utilizadores.

Mariana Silva disse...

Correcção: "quando a 500 metros da secretária".

Anónimo disse...

Bom texto e um belo comentario da Mariana. neste mundo veloz o andar a pe a algo de "pessoas estranhas".. gostei da parte que se descobre mais coisas do que na time out, é pura verdade.Eu tb adoro andar a pe.faz me sonhar e ter ideias..

Spitfire disse...

Se fosse para andar a pé não "tínhamos" inventado a roda.

É o tipo de coisa que digo quando a distância é "demasiado grande", mas depois contradigo-me quando vou a pé fazer alguma coisa porque "não me apetece tirar o carro do sítio" ou "vou ter estacionar longe do local e vou acabar por andar à mesma" ou até "ora são x quilómetros gasto y para 100km... evito gastar z euros se for a pé" (ultimamente também me aparece em mente "o exercício faz bem").
Não ando, nem tenho, bicicleta (aterrei aqui ao procurar "espelhos refletores para bicicletas"), o que reduz as hipóteses de escolha na forma de deslocação, desloco-me maioritariamente de carro, mas qualquer coisa distância que não faça o motor do carro chegar à temperatura ideal de funcionamento, é para fazer a pé ;)

Se mudar de ideias no que toca à posse de uma "cena a pedal", certamente aterrarei aqui mais vezes.