Texto originalmente publicado no Jornal Pedal nº 11, de Dezembro 2012. Apesar da idade do mesmo o conteúdo mantém-se actual, salvo nas condições que cada escola aqui retratada disponibiliza para os seus cursos. Confirmem nos links abaixo a oferta em vigor.
Manobrar uma máquina requer conhecê-la
para lá do seu manual de instruções. Implica mais do que usar a
lógica. Adquire-se com a prática. Quem ensina e quem aprende a
andar de bicicleta sabe que é assim, um exercício de experimentação
motora e de expulsão de receios que bloqueiam o acesso à
experiência. Tudo isto se consegue mediante algumas premissas, ou
antes, tudo fica mais fácil quando elas estão reunidas.
Quem escreve esta reportagem é também
instrutor de condução de bicicleta, o que pode levantar algumas
questões sobre o puxamento da brasa a uma sardinha que começa a dar
as primeiras pedaladas como área de negócio. Creia o leitor que é
uma tarefa exigente, esta de quem escreve, conquanto traz consigo a
possibilidade de explorar nuances e subtilezas só ao alcance dos que
conhecem o terreno e a experiência que aqui se conta.
Decidir
Muitas são as razões que levam alguém
a adiar o momento em que se aprende a descolar os pés do chão e a
ganhar controlo sobre um mecanismo simples, porém simbiótico, que
alicerça uma nova forma de contacto entre o chão e o nosso corpo.
Substituir os pés pelas rodas e o pavimento pelos pedais está ao
alcance de todos os que sentem motivação para experimentá-lo. Sem
isso, nada feito. A vontade antecede tudo, mesmo os pânicos de
última hora que podem levar a algumas desistências ou a novos
adiamentos.
Nos últimos 6 anos surgiram cursos
para ensinar a pedalar e procura não tem faltado. A Escolinha da
Bicicleta, do Núcleo Cicloturista de Alvalade, em Lisboa, foi a
primeira a oferecer o serviço, uma ideia que surgiu depois de lhes
ser concedido um espaço no Complexo Desportivo Municipal de São
João de Brito, passando o colectivo a dispor de um ringue de jogos
onde desde 2006 ensinam. Começou como uma “carolice”, diz-nos o
presidente e instrutor João Santos: “ninguém estava à espera que
alcançássemos o número de alunos nem os efeitos práticos que daí
resultaram”. A procura destes cursos é geralmente antecedida de
outras tentativas frustradas, a solo ou com a ajuda de familiares e
amigos.
Rui Pratas é o instrutor da
Pedalnature e há dez anos deu-se conta de que algumas amigas suas
não sabiam andar de bicicleta, oferecendo a sua ajuda para
ensiná-las. Quando decidiu levar o assunto mais a sério acabou por
encontrar a Escolinha de Alvalade, que já existia. Rui obteve depois
uma formação em Jogo e Motricidade Infantil cuja metodologia
adaptou para ensinar o equilíbrio da bicicleta a adultos. As
primeiras amigas que ensinou representaram a ponta do icebergue que
viria a descobrir mais tarde: “80% dos iniciantes que tenho são do
sexo feminino, dos quais 50 ou 60% nasceram entre 1962 e 1975”. Rui
avança uma possível explicação para este fenómeno que ocorre na
Grande Lisboa, associando-o ao período em que a cidade cresceu e
ficou dominada pelo automóvel: “Foi o final das brincadeiras de
rua”, diz-nos, resultado de um sentimento de insegurança
crescente.
Para Ana Pereira e Bruno Santos, da
Cenas a Pedal, é difícil traçar um perfil de pessoas que os
procuram. Formados em 2008 pelo britânico Cyclists' Touring Club
para a instrução de condução de bicicleta (tal como este que vos
escreve), lidam com aprendizes de todas as idades e com as mais
diversas histórias de vida. Há receios que acompanham os aprendizes
até às aulas, mas também uma dose suficiente de coragem, vontade e
perseverança: “Há muitos medos associados e quanto mais velhas
são as pessoas mais isso se nota, porque tiveram mais anos para
criar expectativas. E não é só o medo de cair, é também o medo
de falhar, medo de se meterem a fazer uma coisa que acham já não
ser para a sua idade, isso tem uma importância diferente da que tem
para uma pessoa de 20 ou 30 anos, há esse medo de estar a arriscar
fazer algo meio atípico para a idade e depois não funcionar”, diz
Ana. Mas a experiência de instrutores e alunos prova que funciona.
Avançar
São os adultos quem mais procura estas
aulas, mas há também pais que optam
por dar aos filhos a oportunidade de aprender num ambiente
controlado. Para a Cenas a Pedal e Escolinha de Alvalade, que ensinam
crianças a partir dos cinco anos, as razões para essa escolha
variam entre a limitação física dos pais, para acompanhar em
segurança a aprendizagem dos filhos, e o insucesso de tentativas
anteriores. Embora seja normal as crianças aprenderem mais depressa
que os adultos, estes cursos funcionam para todos e todas as idades
como um acelerador desse processo, a forma mais eficiente de
desenvolver e adquirir novas competências. Qualquer pessoa está
apta a aprender, até sozinha. O que aqui se faz é evitar caminhos
tortuosos e aquisição de vícios que prejudiquem ou não
acrescentem nada de essencial ao andar de bicicleta. Cada instrutor
tem o seu método e há, entre todos, alguns pontos de convergência.
Leonel Mendonça, instrutor nos cursos
que a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de
Bicicleta (FPCUB) organiza pontualmente em conjunto com a Câmara
Municipal de Lisboa, tem a missão de ensinar em grupo, factor que
considera ajudar à aprendizagem: “uns puxam pelos outros e estão
todos em pé de igualdade. Ao ser em grupo, nós não conseguimos
estar a dar apoio a todos ao mesmo tempo, o que faz com que eles
sejam obrigados a ter uma certa autonomia no momento em que estão a
aprender”. A mesma opinião já não é partilhada por Rui Pratas
da Pedalnature que, depois de ter experimentado essa abordagem,
apercebeu-se da discrepância de ritmos de aprendizagem: “não é
justo dar mais atenção aos que evoluem mais depressa. [Agora] as
aulas são sempre individuais e reservo três horas para cada uma”,
refere.
Este ano, surgiu o primeiro curso do
género na cidade do Porto pela mão de Pedro Rosa, bailarino e
coreógrafo. “A minha experiência no ensino da dança
contemporânea a jovens e adultos é a base do meu método”,
conta-nos. “Passa por uma desconstrução precisa da postura e do
movimento, de uma análise cuidada do funcionamento do corpo e da
própria mecânica envolvida no acto de dirigir uma bicicleta.
Trata-se de fazer um trabalho passo a passo, começando com noções
e tarefas mais simples e progredindo até ao acto completo de dirigir
a bicicleta com segurança e leveza”, continua.
Todos concordam que um bom espaço de
ensino é condição fundamental para a eficácia da aprendizagem.
Zonas amplas, planas ou com ligeira inclinação para facilitar o
arranque, sem trânsito, sem obstáculos numa primeira fase, com
curvas e obstáculos na fase final. Nem sempre é possível reunir
num mesmo local todas as características desejáveis, sendo
necessário priorizar e ajustar. Os instrutores têm locais de treino
habituais podendo, no caso da Cenas a Pedal e Pedalnature,
deslocar-se até à zona de residência do aluno, caso seja do seu
interesse e exista um local de treino adequado nas proximidades.
Com
alguma frequência surgem pedidos para que as aulas se
realizem longe de olhares indiscretos. O desejo de não querer ser
visto, seja por desconforto ou por se tratar de figuras públicas,
deve ser tido em conta na medida em que pode influenciar o ritmo e o
à-vontade necessários para aprender. Rui Pratas recorre
preferencialmente a uma área no Parque das Nações, em Lisboa, e
chega a iniciar as aulas às 5h30 da manhã, quando não se vê
vivalma nas redondezas, para satisfazer esses pedidos. A Cenas a
Pedal realiza os seus cursos regulares no Jardim da Estrela onde
tenta uma abordagem diferente sobre a privacidade:
“Nós tentamos desdramatizar isso, aprender a andar de bicicleta é
como fazer outra coisa qualquer”, diz Bruno acrescentando que,
quando o aluno não se sente à vontade, acaba por pedir um sítio
mais resguardado ou é o próprio instrutor quem toma essa decisão:
“é um bocadinho mais desafiante, às vezes, e há pessoas que
obviamente encaram isso com mais à-vontade do que outras, mas não
tem impedido que aprendam e tem a vantagem de o fazerem num sítio
mais realista, no fundo”.
Adquirir
As circunstâncias específicas de cada
aluno recomendam que os instrutores adaptem o que for necessário
para beneficiar a aprendizagem. É o que acontece com a escolha da
bicicleta de treino, onde o tamanho, a geometria e destreza a que
obriga na condução têm influência directa sobre o aluno, como nos
diz João Santos: “Isso é outro segredo do ensinar a andar de
bicicleta, que a pessoa se sinta bem, [sabendo que] assim que põe os
pés no chão está em segurança e não cai, porque as pernas fazem
um bipé sem ter que se levantar. Só depois é que começamos a
subir gradualmente o selim”. Rui Pratas tem vindo a especializar-se
no ensino a pessoas obesas, construindo uma bicicleta adaptada para
esse efeito – com rodas mais pequenas, tamanho 24'', e um sistema
de travões alterado – de forma a “não obrigar os iniciantes a
dobrar tanto os membros inferiores, que é a maior dificuldade que
têm”. Hoje, graças ao passar da palavra, é bastante procurado
para este serviço.
A aprendizagem tem um lado mecânico e
outro, mais subjectivo, que exige dos instrutores uma sensibilidade
para compreender bloqueios mentais. Por mais método que se
desenvolva e eficiente que se consiga tornar o processo, o instrutor
é sobretudo um companheiro de aprendizagem, um apoio, um guia,
alguém que encoraja e valida constantemente os pequenos avanços que
o aluno realiza. A bicicleta e o ciclista devem fundir-se num corpo
só: “no início os principais problemas são a verticalidade do
corpo, o alinhamento com a bicicleta e a utilização funcional do
guiador”, refere Pedro Rosa, notando também que “muitas vezes o
corpo inclina-se para os lados, encolhe-se e fica tenso aos primeiros
sinais de desequilíbrio ou receio de algum imprevisto” e a
tendência é agarrar o guiador com muita força. Para conseguir
aliviar a tensão “respiramos fundo”, conclui.
Ana Pereira considera “a parte
emocional tão ou mais importante do que a técnica. Muitas vezes tu
explicas e a pessoa percebe, mas depois têm a parte emocional a dar
cabo daquilo, por isso não serve de muito seres bom a explicar a
técnica se depois não tiveres um perfil de relacionamento
interpessoal que permita vencer essas barreiras”. Por essa razão,
o treino faz-se também do lado dos instrutores já que é
fundamental criar uma relação de confiança e para isso é
necessária uma boa dose de reforço positivo: “As pessoas costumam
dizer que nós somos muito simpáticos e temos muita paciência. A
experiência aí ajuda imenso, porque eu não tenho que fingir
confiança, eu tenho confiança que aquilo vai funcionar. Por isso,
às vezes as pessoas acreditam nelas próprias simplesmente porque
sentem que eu acredito nelas”, remata Ana.
Talvez a maioria das pessoas passe pela
experiência de aprender a andar de bicicleta duas vezes ao longo da
sua vida – a primeira como aprendiz, a segunda para ensinar os
filhos. É raro encontrar quem não se lembre do momento da sua
“descolagem”, tal é a grandeza da emoção que se sente. Para os
instrutores, apesar do aperfeiçoamento da técnica e da
automatização dos processos, a alegria de ver alguém ganhar asas
mantém-se, como se fosse a primeira vez.
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