sexta-feira, setembro 08, 2017

15% em 2025 – o que significa a meta de Lisboa para as bicicletas, ambiciosa ou pouco realista?


A Câmara Municipal de Lisboa apresentou recentemente as suas metas para tornar a capital numa cidade ciclável até 2025 e fê-lo naquele que é provavelmente o maior palco mediático global da mobilidade em bicicleta, mas também o que reúne o público mais informado e crítico.

Slide da apresentação das metas para Lisboa durante o Velo-city 2017

Os números apresentados são expressivos e a verificarem-se nos prazos que foram anunciados representarão uma autêntica revolução para a cidade e seus habitantes. O que está em causa é a distribuição modal, que indica a percentagem de pessoas que usa cada modo de transporte disponível no sistema de uma cidade.

Em Lisboa, as bicicletas representavam em 2011 apenas 0,2% do total das deslocações pendulares (casa-trabalho) de acordo com os Censos, que são os dados oficiais mais recentes disponíveis. As metas agora anunciadas revelam que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) pretende que as bicicletas passem a representar uma fatia de 7% em 2020 e 15% em 2025.

O anúncio foi feito no passado mês de Junho durante o Velo-city 2017 em Nimega, Holanda, onde a CML esteve representada por Rita Castel’ Branco, do Departamento Municipal de Mobilidade e Transportes. Lisboa foi uma das cidades candidatas à organização da edição deste ano do Velo-city, tendo mesmo sido seleccionada como uma das três finalistas antes de perder para a cidade holandesa.

A apresentação conduzida por Rita Castel’ Branco integrou uma das sessões paralelas, intitulada “Cycling Officer’s Secrets”, onde além da divulgação das metas para os próximos 8 anos foi também avançado um dado até agora desconhecido: em 2017, Lisboa conta com 1,4% de deslocações pendulares feitas em bicicleta. A fonte em que se baseia este número não foi referida durante a apresentação e permanece incógnita, uma vez que não existe estatística oficial publicada que o sustente e esclareça qual a metodologia que foi utilizada para o obter.

Rita Castel' Branco, CML, durante a apresentação

O que significam estes números?

A metodologia usada nos Censos de 2011, através da qual se obteve o valor de 0,2%, considera como ciclistas apenas aqueles que usam a bicicleta para percorrer a maior distância de uma deslocação, excluindo assim todos aqueles que recorrem aos transportes públicos, como o comboio, para percorrer a maior parte do seu trajecto. Um utilizador de bicicleta que opte por conjugar na sua viagem outro meio de transporte e acabe por fazer mais quilómetros dessa forma, é incluído na fatia desse modo de transporte e não na categoria dos velocípedes.

Como a bicicleta é sobretudo competitiva nas deslocações mais curtas, a metodologia usada nos Censos acaba por ser insuficiente para dar uma imagem rigorosa da repartição modal, o que leva várias cidades noutros países a recorrerem a outras fontes de dados para os complementar. No caso das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, o Instituto Nacional de Estatística lançará ainda este ano um novo inquérito à mobilidade, o IMob, que será uma oportunidade para actualizar com mais rigor os valores da distribuição modal nestas cidades.

Até agora não foi esclarecido como se chegou ao valor anunciado de 1,4% de bicicletas a circular em Lisboa em 2017, o que nos impede de saber até que ponto podemos interpretar este número e compará-lo com os 0,2% obtidos através dos Censos 2011. Se a metodologia aplicada tiver sido a mesma, este aumento significa que em 6 anos o número de ciclistas cresceu 6 vezes e, como se trata de uma repartição modal, terá também ganho quota de mercado em relação a outros modos de transporte durante esse período.

Se a metodologia adoptada tiver sido outra, o valor de 1,4% pode mesmo estar mais próximo da realidade de 2017 do que os 0,2% estavam do contexto de 2011, algo que só será possível confirmar quando forem conhecidas as opções tomadas nessa pesquisa e em que momento esse trabalho foi realizado.

As medidas da CML divulgadas no Velo-city 2017

Outro aspecto a ter em conta é a diferença entre percentagem (número relativo) e o número absoluto de bicicletas que circulam numa cidade, porque não basta haver mais ciclistas para alterar a repartição modal – é preciso que haja mais em comparação com os outros modos de transporte. Por exemplo, sempre que há crescimento económico geram-se mais viagens diariamente, como as deslocações para o trabalho que aumentam quando a taxa de desemprego diminui (o que é uma diferença relevante entre 2011 e 2017), e isso faz com que todos os transportes tenham maior utilização.

Sendo bastante provável que o número absoluto tenha aumentado em todos os modos de transporte nos últimos 6 anos, por via do crescimento económico, a questão fulcral é então perceber em qual deles mais cresceu e como é que esse crescimento afectou a distribuição modal como um todo mas, no limite, pode dar-se o caso de haver mais ciclistas sem que haja menos automóveis a circular, menos passageiros nos transportes colectivos ou menos motas e peões.

Comparar as metas de Lisboa com outras cidades

Já os números avançados pela CML para 2020 e 2025, que pretende atingir 7% e 15% respectivamente na quota modal das bicicletas, parecem muito optimistas quando comparados com as metas de outras cidades.

Na mesma sessão em que foram apresentados estes valores, esteve também presente um representante da cidade de Nantes, França, anfitriã do Velo-city 2015. Esta cidade, cuja população da área metropolitana se assemelha à do concelho de Lisboa, tem actualmente 3% de quota modal nas bicicletas e 6% quando se considera apenas a zona central. Para 2030, o objectivo de Nantes é atingir os 12%. Ou seja, a sexta maior cidade francesa parte de um nível superior ao de Lisboa, pretende crescer de uma forma mais modesta e num prazo mais alargado do que a CML se propõe.

A European Cyclists’ Federation (ECF) disponibiliza no seu site exemplos de 70 cidades com metas já definidas para o crescimento do uso da bicicleta, o que permite situar a ambição da CML num contexto global. A metodologia de contagem poderá ser diferente em cada caso e dependerá também do investimento feito na recolha dos dados, mas são raras as cidades listadas que apresentam metas de crescimento tão grandes como Lisboa.

Lisboa não consta da lista de 70 cidades elaborada pela ECF

Londres, que em 2011 registava 2% de bicicletas, pretende atingir 5% até 2026, o que representa 2,5 vezes mais ciclistas em 15 anos. A meta de Paris é chegar aos 15% em 2020, três vezes mais do que os 5% registados em 2015. As cidades espanholas de Granada e Málaga tinham em 2011 um valor semelhante a Lisboa – 0,4% – e querem ambas obter 15% até 2020, o que significa 37,5 vezes mais bicicletas em circulação.

Lisboa propõe-se crescer 75 vezes entre 2011 e 2025, passando de 0,2% para 15% de bicicletas. O que este crescimento significa é que, por cada um dos ciclistas contabilizados nos Censos de 2011, terá que haver 75 novos ciclistas. É basicamente transformar cada ciclista num pelotão. Se partirmos do valor de 1,4% que foi apresentado para 2017, o crescimento nos próximos 8 anos terá que ser de 10,7 novos ciclistas por cada ciclista actual.

Para que este crescimento se verifique no tempo proposto, Lisboa terá que se transformar de forma radical e contar ainda com a adesão da população a um novo meio de transporte. Estas mudanças são habitualmente lentas como prova a experiência de outras cidades, onde não bastou implementar uma rede de ciclovias, um sistema de bicicletas partilhadas e estacionamento para que se atingissem valores na ordem dos 15%. Estas medidas, que são actualmente a aposta da CML, contribuirão sem dúvida para que haja mais ciclistas na cidade, resta saber quantos serão e que modos de transporte perderão utilizadores.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

O efeito moralizante da ciclovia bi-direccional na Avenida da República

Numa avenida larga, a vantagem de concentrar os ciclistas num único canal está em aumentar a sensação de fluxo constante de bicicletas, que de outro modo estariam dispersas pelos 60 metros que separam as fachadas nascente e poente da Avenida da República.


Caso restassem dúvidas da existência de ciclistas a circular em dias úteis e a horas de ponta na cidade de Lisboa, argumento que foi ensaiado recentemente por um partido político, a nova ciclovia da Avenida da República veio ajudar a dissipá-las. É consensual entre especialistas em mobilidade suave a ideia de que a construção de vias para bicicletas contribui decisivamente para o aumento do número de ciclistas, o que é corroborado pelos números registados antes e depois de obras feitas em várias cidades do mundo.

No entanto, esse aumento dependerá ainda de factores complementares como são a continuidade e interligação da ciclovia, a qualidade da construção da mesma e, por fim mas não em último, a mais-valia que a nova via traz às alternativas previamente existentes. É sobre este último ponto que a seguir se discorre, pois é esse um dos sucessos já revelados da nova ciclovia da República.

A Câmara Municipal de Lisboa (CML) tem optado quase exclusivamente pela construção de um tipo de ciclovia, a chamada bi-direccional, que concentra no mesmo canal os dois sentidos de trânsito. O projecto inicial da CML para a Avenida da República incluía, na verdade, duas ciclovias uni-direccionais situadas juntos às antigas vias laterais da avenida, o que seria uma novidade. No entanto, a pressão dos moradores para que se mantivessem lugares de estacionamento automóvel, expressa em consulta pública, levou à revisão do projecto e à eliminação da ciclovia nascente, sentido sul-norte, concentrando os dois sentidos na ciclovia poente.

Esta opção poderá ter sido a melhor resposta às críticas que se têm ouvido sobre a baixa utilização das ciclovias ou o reduzido número de ciclistas que, alega-se, não justifica o investimento feito. É justamente o contrário que acontece – se as constróis, eles aparecem.

Criou-se a ciclovia, foram (quase) todos para lá.

A intervenção na avenida incluiu também a reconversão e alargamento dos passeios e a eliminação da continuidade das vias laterais, onde antes circulava a maioria dos ciclistas juntamente com o trânsito automóvel. Ao fazê-lo, os ciclistas deixaram de poder contar com o espaço a que recorriam antes da obra e viram-se obrigados a circular na nova ciclovia para atravessar a totalidade da avenida, sem drásticas interrupções na via.


Assim, tanto do lado nascente como poente, a ciclovia tornou-se “forçosamente” o canal mais interessante para os ciclistas, uma vez que as alternativas não são tão confortáveis. Além de eliminada a continuidade das vias laterais, estas estão agora menos largas e não permitem ultrapassagens carro-bicicleta com uma distância segura. O sucesso da nova ciclovia depende em parte deste factor – eliminar as redundâncias tornando as alternativas significativamente menos apelativas para os ciclistas.

Antes desta obra, as avenidas que ladeiam paralelamente a da República, a 5 de Outubro e a Defensores de Chaves, poderiam até ser boas alternativas ao eixo central nalguns percursos e para alguns ciclistas. Com a alteração dos padrões de conforto agora introduzidos na Avenida da República, é expectável que esta atraia algum do tráfego ciclável das avenidas adjacentes.

Tudo somado, são muitas as bicicletas que já se contam na via inaugurada há apenas um mês.

A percepção é boa. E os números?

Esta semana, na quarta-feira dia 22 de Fevereiro, foi feita uma contagem e recolhidas imagens entre as 8h30 e as 10h30 da manhã no cruzamento das ciclovias da Avenida Duque d’Avila e Avenida da República – provavelmente o primeiro cruzamento relevante deste tipo de vias em Lisboa. Nessas duas horas foram contados 174 ciclistas, entre homens e mulheres.


No vídeo publicado é perceptível um maior número de ciclistas a circular na Avenida da República do que na Duque d’Ávila, sobretudo no sentido norte-sul, o que é coerente com o movimento periferia-centro que ocorre no período de ponta matinal. Isto significa, como aliás as imagens o ilustram, que se trata na sua grande maioria de ciclistas em rota para o trabalho e não em lazer. As bicicletas que se vêem são variadas, entre citadinas e modelos mais desportivos. Há ainda dois skaters, um monociclo eléctrico e alguns pais com crianças.

 
Entre as 8h30 e as 9h30 foram contados 96 ciclistas, lê-se na descrição do vídeo, e os restantes 78 no período das 9h30 às 10h30. Não seria necessário contá-los para constatar que se vêem mais bicicletas agora a passar na Avenida da República, talvez fruto dessa maior concentração de ciclistas que antes circulavam dispersos pelas antigas laterais e avenidas contíguas. Mas contar ciclistas é fundamental e deve ser uma prioridade de todos os interessados em promover a mobilidade em bicicleta.

A CML tem responsabilidades e poderes acrescidos para poder encetar um programa de contagens pelas ruas e ciclovias da cidade e será actualmente o órgão mais interessado em mostrar os resultados (positivos, é certo) da sua obra. Esses dados devem ser públicos e serão, seguramente, a melhor resposta às críticas pouco fundamentadas ao investimento na rede de ciclovias que se têm feito ouvir.

Obrigado à Rosa Félix, autora do vídeo.

quinta-feira, março 10, 2016

Ecopista Guimarães – Fafe: longe da vista, longe do viajante

Este artigo faz parte de um conjunto de textos sobre as Ecopistas de Portugal – projecto para o desenvolvimento de caminhos para bicicletas e peões através do aproveitamento de linhas ferroviárias desactivadas – servindo como base para uma análise mais aprofundada do potencial destas infraestruturas. Discute-se o seu uso do ponto de vista da bicicleta e não ferroviário.

Casas, campos agrícolas e um acesso privilegiado

Chegando à estação de comboios de Guimarães, esperava encontrar algum vestígio da linha que até 1986 dali partia em direcção a Fafe. A estação fora entretanto substituída por uma nova, construída mais à frente, terminando agora numa parede de betão atrás da qual um parque de estacionamento automóvel e uma rotunda separam a moderna infra-estrutura de um terreno verde de erva pujante, onde só a ausência de edifícios deixa imaginar que por ali, em tempos, terá passado um comboio.

A Ecopista de Guimarães faz parte do Plano Nacional de Ecopistas criado em 2001 pela então REFER Património, gestora da rede ferroviária, agora denominada IP Património. O plano foi criado “tendo em vista a requalificação e reutilização das linhas e canais ferroviários sem exploração”, pode ler-se no site da empresa, onde o trajecto entre Guimarães e Fafe é anunciado como parcialmente concluído – de um total de 21 quilómetros, pouco mais de 14 estão finalizados.

Entrada pelas traseiras


No posto de turismo da cidade que foi a primeira capital do país explica-se como chegar ao local onde a via começa. Os mapas disponíveis para oferecer aos visitantes estão circunscritos a uma zona mais central da cidade e o guia precisou de recorrer a um exercício de imaginação para me ilustrar o que faltava do caminho. Perguntei o que tinha acontecido à parte da linha que saía da estação e atravessava a cidade antes de começar a subida à Penha. “Já não existe”, foi a resposta dada num tom simpático, como é tudo aqui.

A Penha é o nome do monte que os primeiros quatro quilómetros de linha serpenteavam para alcançar o seu topo, cerca de 150 metros acima da estação, deixando para trás a cidade e, ao mesmo tempo, proporcionando uma vista panorâmica sobre ela. Um artigo publicado na revista Ilustração Portugueza aquando da inauguração da linha em 1907, dá conta do que se podia observar à época:

Sae esta nova linha da estação de Guimarães agarrando-se ao magestoso monte da Penha, encimado com a estatua de Pio IX e um pittoresco hotel, e, durante quatro kilometros, sempre subindo, vae-nos mostrando soberbos panoramas que se estendem desde a cidade de Guimarães até às alturas do Sameiro. Rodeado um contraforte do monte da Penha, entra-se então no extensissimo valle de S. Torquato.
Vista para o Vale de São Torcato

Hoje, este troço do percurso faz-se por uma alternativa menos sonante, a antiga Estrada Nacional 101, que foi transformada nas ruas Padre António Caldas e da Cruz da Argola depois de construída a sua variante. Tem a vantagem de encurtar a distância e os senões de ser mais íngreme e de ter trânsito motorizado pouco afeito à partilha com ciclistas. A vista até pode ser boa mas a falta de sinalização que indique o início da ecopista e o movimento rodoviário constante convidam pouco à contemplação. A primeira indicação da “pista de cicloturismo” aparece somente para assinalar a saída desta estrada, voltando a surgir a partir daqui sempre que é necessário mudar de direcção. Quando em recta, mesmo passando por rotundas e outras junções, não há qualquer placa indicativa, o que só aumenta a ansiedade do ciclista durante a subida... ter-me-ei enganado no caminho?

É nas traseiras de uma fábrica do sector têxtil que se entra na ecopista, assinalada com um pórtico metálico de dimensão um tanto ou quanto exagerada, como que tentando devolver o prestígio a algo importante, sem dúvida, que porém se esconde nas traseiras de uma fábrica. Rapidamente se esquece tudo isto quando se olha para o vale que preenche a paisagem à esquerda.

Chamar-lhe “pista” adequa-se, mas não devia


A construção desta linha de comboio tornou-se viável financeiramente após uma revisão do traçado que permitiu eliminar dois túneis inicialmente previstos. O plano nunca concretizado era, a partir de Fafe, fazer a ligação com as linhas do Tâmega e do Corgo, aproximando o Minho e Trás-os-Montes, até à cidade de Chaves.

Após o encerramento do serviço ferroviário, a Câmara Municipal de Fafe foi a primeira a converter o canal em pista de cicloturismo, como lhe chamam na placa que assinala a sua inauguração em 1996. Seguiu-se-lhe o município de Guimarães, três anos depois, que a completou até ao local onde ainda hoje principia.

Em bom estado de conservação está o asfalto, que é acompanhado por uma linha branca que percorre todo o trajecto, um traço continuo que dificilmente cumpre a função de proibir a transposição da via de circulação porque, numa faixa com estas características, tal regra é desnecessária e até contraditória desde logo porque é partilhada por ciclistas e peões, recomendando ultrapassagens com alguma distância lateral. Uma despesa em tinta que poderia ser poupada sem que a segurança dos utilizadores fosse afectada.

Nalguns troços vemos rails de protecção lateral iguais aos das autoestradas, estes sim uma ameaça à segurança dos ciclistas. O que é bom para os automobilistas, como estes são, pode transmitir uma falsa sensação de segurança a quem tem o corpo exposto em caso de embate ou queda e estes rails, que deveriam ser almofadas, são antes facas sem gume.

Rail de protecção lateral e pórtico
Cruzamento com uma estrada











Um trabalho realizado pela Universidade do Minho em 2001 aponta todos estes pormenores, colocando a tónica na segurança dos ciclistas e na sua fruição do percurso – aspectos que se interligam, obtendo-se um por via do outro. No artigo são referidas medidas que permitiriam transformar este canal num verdadeiro corredor verde, o que, apesar de algumas melhorias, ainda está por concretizar. Percebe-se que a escolha das protecções laterais teve como principal preocupação impedir o acesso de veículos motorizados à ecopista mas, conspicuamente, todos os equipamentos obedecem a uma linguagem rodoviária e não de ciclovia, como também é notado nesta passagem:

Estes elementos estruturantes (...) não devem reflectir o aspecto, dimensões, ou tipo de material usados standardizadamente nas estradas. Deve-se implementar uma imagem própria à ciclovia (...). A título de exemplo, as velocidades inerentes a velocípedes justificam sinais de menores dimensões, que não têm que ser de tão rápida percepção como a sinalização de estrada.

Tudo isto se torna pouco importante quando se olha em volta a vista imensa. É, todavia, justamente esse o motivo que deve orientar a escolha de soluções, permitindo uma distracção segura e desejável em vez de iludir na segurança ou fantasiar com estradas como as dos automóveis, como se as vias para bicicletas fossem uma brincadeira infanto-juvenil. Nunca foram.

Estação de Paçô Vieira, concelho de Guimarães
Estação de Cepães, com esplanada, concelho de Fafe











O que pode ser melhorado


A remeter para algum outro imaginário que não o de uma via para ciclistas e peões, a ecopista deverá valorizar o património ferroviário e relembrar ao viajante a história deste canal e o porquê dele existir. Dificilmente se cortariam montanhas e fariam taludes, túneis e pontes como aqui se fosse para criar de raiz um corredor verde. Esta via e o seu suave declive existem porque em tempos passaram por aqui comboios fumegantes.

Ciclovia do Parque da Cidade, Fafe
Contudo, para dar maior coerência a esta via, é necessário prolongá-la em ambos os sentidos. Se em Fafe a ecopista já tem continuação através de uma ciclovia que convida a entrar na cidade, penetrando no parque verde até chegar a uma praça central, poderia daí continuar cumprindo o projecto original de ligar a Chaves e aproximar o Minho e Trás-os-Montes.

Do lado de Guimarães, duas opções estratégicas: prolongar a pista até à estação de comboios pelo troço original e, enquanto isso não é feito, melhorar a sinalização a partir do centro da cidade. Vamos por partes.

A primeira impressão com que se fica, olhando para o edificado, é que o canal ferroviário foi ocupado pela expansão urbana, o que também é sugerido pela demolição de um antigo apeadeiro nesta zona. Felizmente, olhando atentamente para a vista de satélite e confrontando-a com um antigo mapa, percebe-se que o corredor permanece livre, nuns casos abandonado às ervas, noutros transformado em arruamentos, como é o caso da Avenida Rio de Janeiro. A engenharia do início do século XX tem tudo para poder voltar ao serviço, proporcionando agora uma suave subida aos ciclistas.

O troço entre a estação e o início da ecopista em Guimarães, a tracejado. Fonte

De acordo com as normas de sinalização vertical, uma placa cor-de-laranja, como a que indica a pista de cicloturismo, refere-se a equipamentos desportivos e estes, normalmente, existem num lugar concreto, como um hipódromo, um autódromo ou um ringue de patinagem. Contrariamente a esses equipamentos, esta pista de cicloturismo une duas cidades por meio de uma via sem tráfego motorizado e isso deveria estar inscrito na sinalética, com outra cor de fundo e, sobretudo, contendo a informação da localidade para onde segue e a respectiva distância, fundamental para quem se desloca de bicicleta.

Uma humilde sugestão gráfica do que pode estar inserido na sinalética

Enquanto esta pista for tratada como um equipamento desportivo e não como uma via de circulação, ficará por explorar o potencial turístico e patrimonial que a Ecopista Guimarães – Fafe em si contém. Ligá-la à estação de comboios trará mais visitantes, desde que devidamente anunciada e sinalizada, na estrada e nos mapas. Continuá-la de Fafe até Chaves, através de um corredor verde, deve ser visto como um investimento estratégico e o corolário de uma ideia com mais de 100 anos.


 
A última viagem do comboio

 A ecopista actualmente

segunda-feira, setembro 28, 2015

Transtejo - suspender serviços de transporte implica criar alternativas

Sempre que se suprime uma ligação ou transporte é necessário oferecer soluções alternativas, excepto quando se trata de bicicletas.


A supressão do serviço de transporte de bicicletas nas ligações fluviais de Lisboa ao Seixal, Montijo e Cacilhas foi anunciada pela Transportes de Lisboa, um dia depois da Semana Europeia da Mobilidade, mas não chegou a sair do papel. O que ficou deste episódio, além da ausência de uma explicação clara por parte da empresa, foi a ideia de que a mobilidade ciclável, ao contrário de outras, dispensa a criação de alternativas quando as ligações existentes são afectadas.

Interior de um dos navios que seriam afectados pela medida

Pensemos numa estrada que foi cortada para conclusão de obras. Os sinais de "desvio" são colocados juntamente com indicações para chegar aos destinos afectados pelos trabalhos na via.

Seja por motivo de greve ou por decisão de uma administração, a supressão de ligações ferroviárias de transporte de passageiros obriga, por lei mas também por bom senso, a que sejam disponibilizados serviços mínimos e transportes alternativos, geralmente autocarros.

Quando uma carreira de autocarro é eliminada, outras passam a compensar no seu percurso as zonas afectadas por essa perda.

A própria Transtejo anunciou em Julho que, "devido a trabalhos num pontão do Terminal do Terreiro do Paço", desviou temporariamente para o Cais do Sodré a ligação fluvial do Montijo, o que pode ser um transtorno para alguns mas seguramente melhor do que suspendê-la totalmente.

As alternativas poderão ser insuficientes, diminuindo até a qualidade do serviço prestado. Podemos, enquanto utentes, discordar das condições oferecidas em caso de afectação do transporte a que estamos habituados e em torno do qual organizámos a nossa rotina diária nas deslocações que precisamos de fazer - ir para o trabalho, às compras, buscar os filhos à escola, etc.

Por piores que sejam as soluções criadas para compensar uma alteração a um serviço de transporte, elas existem e dificilmente aceitaríamos que assim não fosse.

Então porque é que a Transportes de Lisboa anunciou esta restrição sem oferecer quaisquer alternativas aos ciclistas?

Na ligação Terreiro do Paço - Barreiro alguns navios dispõem de suportes

Quando se oferece um serviço regular de transporte de bicicletas, como a Transtejo faz há vários anos, a empresa cria não só uma expectativa em potenciais interessados de ocasião como, mais importante, consegue angariar clientes regulares que passam a depender dele. Pessoas que decidiram ir de bicicleta para o trabalho abdicando do carro que entretanto venderam, que mudaram de casa para poupar na renda ou que aceitaram um trabalho contando com a possibilidade de transportar a bicicleta no barco, usando-a para fazer o resto do percurso em cada uma das margens do rio.

Estas pessoas precisam de alternativas, mesmo que sejam piores. Uma alternativa bem pensada e aplicada minimiza o transtorno e o número de utentes afectados. Como exemplo, a empresa poderia oferecer estacionamento seguro para bicicletas nos terminais, permitindo aos ciclistas deixarem os seus veículos pernoitar na margem do rio que mais lhes conviesse. Dessa forma alguns utentes ficariam apenas "meio" afectados.

Será interessante assistir no futuro a situações semelhantes e perceber se, e como, as bicicletas serão tidas em conta sempre que houver alterações de serviço nos transportes públicos ou nas vias de trânsito. A lição que podemos aprender com este anúncio e recuo da Transportes de Lisboa é que não se pode suspender um serviço sem oferecer pelo menos uma alternativa.



quinta-feira, junho 19, 2014

Estudante, vem devagar

Texto originalmente publicado na revista B - Cultura da Bicicleta nº7, de Junho 2013.
 
Ponte móvel em Roterdão, Holanda

Estudante, vem devagar
Uma história sobre como voltar de Erasmus sem dar por isso, atravessando a Europa de bicicleta.
 
O programa Erasmus que se popularizou nas últimas décadas tem dado a jovens universitários a possibilidade de viver até um ano fora do seu país e desfrutar da vida como se não houvesse ano seguinte. Filmes como A Residência Espanhola celebrizaram esse período quase sabático mostrando como é bom, por vezes, estar longe da família e das redes de proximidade, sentir-se livre e evitar confrontos constantes com o que é expectável de cada um. O Erasmus vem com prazo definido, para deixar claro desde o início que a vida louca e boa não durará para sempre, por mais que se tente prolongá-la um pouco mais. Foi enquanto tentava adiar o regresso que decidi voltar da Dinamarca em bicicleta, no verão de 2005. A história que aqui conto começa no fim desse ano vivido fora e é sobre um regresso demorado, cheio de pressa de viver.

Depois de 11 meses passados a absorver informação nova a um ritmo quase diário, o meu cérebro acabou por se habituar a esse frenesim e terá achado que seria um desperdício voltar de avião, perdendo a oportunidade de ver cá em baixo tudo o que existe entre aeroportos. Atravessar a Europa de bicicleta pareceu-me, então, a solução para os meus problemas. Havia feito dois anos antes uma travessia semelhante, aproveitando as vantagens de um outro programa europeu, o Interrail, e ficara-me a ideia de que a densidade habitacional deste continente deixava no terreno e na paisagem a sensação de quase nunca estarmos sozinhos ou isolados, fazendo desta travessia em solitário algo menor que uma aventura.

Estrada nacional na Dinamarca que segue até à fronteira com a Alemanha

A Europa não tem o exotismo de outras paragens, sobretudo para um europeu, mas atravessá-la de bicicleta, imbuído num espírito de união fraterna entre nações e povos irmãos, que à época estava muito em voga, transportava em si uma ideia de road trip num contexto que nunca se torna muito distante das nossas referências – tudo tem um termo de comparação relativamente fácil e imediato, tudo se assimila facilmente deixando o viajante disponível para outras aventuras que não esbarrem no primeiro e mais elementar desafio de interpretação cultural. Além disso, um ano passado em Erasmus faz-nos criar uma rede de amigos espalhados pelo continente e esta viagem serviu também para visitá-los nas suas cidades de origem.

Tenho que ser honesto: a viagem não foi ultra bem planeada, não era isso que procurava naquele momento. Em vez de rotas cuidadosamente estudadas, locais de dormida e refeições, o que me apetecia era pegar na bicicleta e voltar para casa como se voltasse do trabalho. Uma espécie de commuting mais longo, de 20 dias, com paragens para visitar amigos. Para isso foi necessário enviar toda a tralha por correio de modo a poder viajar apenas com o essencial.

A aldeia de Garrelsweer, Holanda, organiza a cada dois anos uma festa temática

Dinamarca

É difícil dizer que optei por usar a bicicleta que me acompanhou durante todo o ano, pelo simples facto de nunca ter considerado outra possibilidade. Eu não deixava de ser um estudante com limitações orçamentais num país de preços altos e o meu veículo, comprado em segunda-mão, não deixava de ser uma bicicleta de supermercado, que lá são melhores do que as de cá, embora conservem o estatuto de opção barata e de gama baixíssima.

As hesitações fizeram-me partir às quatro e meia da tarde. Deixei a residência em Aarhus onde vivi durante o ano anterior com destino a Kolding, onde ficaria em casa de um amigo. Arrancar àquela hora tardia obrigou-me a gerir muito bem o tempo e o esforço para evitar chegar de noite, muito embora o céu não escureça totalmente no verão dinamarquês durante as breves horas em que o sol se desloca abaixo da linha do horizonte. É assim que se cura a ressaca dos invernos longos naquele país, com horas de sol abundantes no verão, sem estores nas janelas, muitas vezes apenas com cortinas brancas, e acordando ao som do chilrear dos pássaros às três e meia da manhã, o que ganhava contornos mais irritantes que bucólicos quando isso coincidia com a hora a que me deitava.

Até à fronteira com a Alemanha segui pelo caminho mais directo, a estrada nacional, onde quase sempre existe sinalização para ciclistas e uma berma larga para circular. A alternativa, mais bonita, era uma das ciclovias integradas na rede nacional daquele país que atravessam a paisagem por zonas onde a civilização, embora nunca longe, não invade o nosso campo de visão de forma tão constante. A Dinamarca é conhecida por ser um país plano, o que na realidade se traduz como sendo uma espécie de Alentejo, ou um constante subir e descer ligeiros que evitam a monotonia.

Estrada agrícola na Holanda

Alemanha

Sente-se a cada esquina, em cada serviço e apoio prestado ao viajante, que a Alemanha é um país de gente habituada a viajar. No Reisezentren, um balcão que existe em todas as estações de comboios, ninguém estranhou quando pedi para comprar um bilhete até Emden com paragem em Bremen, onde planeava passar umas horas para conhecer a cidade. Viajar com uma bicicleta permite-nos chegar a qualquer sítio e conhecê-lo de uma ponta à outra em poucas horas, essa foi uma das descobertas que fiz neste regresso a casa.
Emden fica numa região fértil próxima da fronteira com a Holanda, junto ao golfo do Dollart, onde os caminhos agrícolas, feitos com placas de betão armado, estão integrados em rotas cicláveis com infografia disponível num mapa dedicado ao cicloturismo, à venda numa livraria perto de si.

Ciclistas e ovelhas cruzam-se num caminho agrícola junto à baía de Dollart, Alemanha

Holanda

A próxima vez que alguém falar na Holanda como um país perfeito para andar de bicicleta, lembre-se disto: fazer muitos quilómetros numa paisagem plana é absolutamente fastidioso. Tal como me disse uma amiga húngara que fez Erasmus em Lisboa, “agora que voltei a Budapeste percebi que aqui tenho de estar sempre a pedalar”. Pois é, as colinas também descem. Disseram-me que a costa holandesa é bonita, mas atenção, o caminho que segui não era feio, apenas plano. Qualquer vantagem que se associe a um chão plano fica sem efeito perante um vento frontal, é como subir uma montanha sem as vantagens de ver a vista lá em cima.

Em Roterdão encontrei-me com amigos de Lisboa que estavam a fazer um curso de verão e, apesar de sermos da mesma cidade, naquele momento vínhamos de cantos opostos da Europa. É difícil a um português, quando sai do rectângulo por algum tempo, disfarçar o sentimento emigrante que exalta dentro de si, apelando à cultura popular da diáspora. Foi com eles que conheci a canção de Graciano Saga que inspirou o título deste artigo, “Vem Devagar Emigrante”, a história de um regresso a Portugal que acaba em tragédia numa estrada de Espanha servia-nos de mote jocoso à experiência de estar fora do país. A Holanda é tão perfeita que chateia, até a natureza foi domesticada. Nada como uma canção dissonante para lhe dar harmonia.

Ferry-boat que atravessa a baía do Dollart, na fronteira entre a Alemanha e Holanda

Bélgica

Segui para Antuérpia, a cerca de 100 km de Roterdão, atravessando várias vezes a fronteira em Baarle-Nassau, um município onde a linha imaginária que separa as duas nações não é uma recta saída do Romantismo mas sim o resultado de vários tratados medievais que criaram enclaves belgas e holandeses dentro da fronteira maior entre os países. Vale a pena espreitar a história do local. De resto, atravessei a Bélgica com pressa de chegar à cidade francesa de Lille no 14 de Julho, grosso modo, o 25 de Abril da França.

Fronteira entre a Bélgica e a Holanda em ciclovia

França

A partir daqui comecei a usar a bicicleta apenas para conhecer as cidades onde fui parando. O país é grande e os problemas mecânicos começavam a surgir. Em 2005, as carruagens dedicadas para transporte de bicicletas nos comboios franceses ainda eram novidade, pelo que aproveitei para experimentar o serviço. Sabia também que essa facilidade desapareceria assim que atravessasse os Pirenéus.

Cidade de Gent, na Bélgica

Espanha

A minha bicicleta cruzou a Europa, levou-me a conhecer Barcelona em poucas horas e depois foi roubada. Um triste final que, contudo, resolveu o problema que seria transportá-la de comboio até Lisboa, implicando desmontar e guardá-la num saco próprio para transporte, que não tinha. A canção de Graciano Saga cumpriu-se uma vez mais, a tragédia aconteceu a um português em trânsito numa cidade espanhola e com ela foi-se a esperança de trazer aquela bicicleta para Lisboa.