A
Câmara Municipal de Lisboa apresentou recentemente as suas metas para tornar a
capital numa cidade ciclável até 2025 e fê-lo naquele que é provavelmente o
maior palco mediático global da mobilidade em bicicleta, mas também o que reúne
o público mais informado e crítico.
Slide da apresentação das metas para Lisboa durante o Velo-city 2017 |
Os
números apresentados são expressivos e a verificarem-se nos prazos que foram
anunciados representarão uma autêntica revolução para a cidade e seus
habitantes. O que está em causa é a distribuição modal, que indica a percentagem de pessoas que usa cada modo de transporte disponível
no sistema de uma cidade.
Em
Lisboa, as bicicletas representavam em 2011 apenas 0,2% do total das
deslocações pendulares (casa-trabalho) de acordo com os Censos, que são os dados
oficiais mais recentes disponíveis. As metas agora anunciadas revelam que a
Câmara Municipal de Lisboa (CML) pretende que as bicicletas passem a representar
uma fatia de 7% em 2020 e 15% em 2025.
O
anúncio foi feito no passado mês de Junho durante o Velo-city 2017 em Nimega, Holanda, onde a CML esteve representada
por Rita Castel’ Branco, do Departamento Municipal de Mobilidade e Transportes.
Lisboa foi uma das cidades candidatas à organização da edição deste ano do
Velo-city, tendo mesmo sido seleccionada como uma das três finalistas antes de perder para a cidade holandesa.
A
apresentação conduzida por Rita Castel’ Branco integrou uma das sessões
paralelas, intitulada “Cycling Officer’s Secrets”, onde além da divulgação das
metas para os próximos 8 anos foi também avançado um dado até agora
desconhecido: em 2017, Lisboa conta com 1,4% de deslocações pendulares feitas
em bicicleta. A fonte em que se baseia este número não foi referida durante a
apresentação e permanece incógnita, uma vez que não existe estatística oficial
publicada que o sustente e esclareça qual a metodologia que foi utilizada para
o obter.
Rita Castel' Branco, CML, durante a apresentação |
O que significam estes números?
A metodologia
usada nos Censos de 2011, através da qual se obteve o valor de 0,2%, considera
como ciclistas apenas aqueles que usam a bicicleta para percorrer a maior
distância de uma deslocação, excluindo assim todos aqueles que recorrem aos
transportes públicos, como o comboio, para percorrer a maior parte do seu
trajecto. Um utilizador de bicicleta que opte por conjugar na sua viagem outro
meio de transporte e acabe por fazer mais quilómetros dessa forma, é incluído
na fatia desse modo de transporte e não na categoria dos velocípedes.
Como
a bicicleta é sobretudo competitiva nas deslocações mais curtas, a metodologia
usada nos Censos acaba por ser insuficiente para dar uma imagem rigorosa da
repartição modal, o que leva várias cidades noutros países a recorrerem a
outras fontes de dados para os complementar. No caso das Áreas Metropolitanas
de Lisboa e Porto, o Instituto Nacional de Estatística lançará ainda este
ano um novo inquérito à mobilidade, o IMob,
que será uma oportunidade para actualizar com mais rigor os valores da
distribuição modal nestas cidades.
Até
agora não foi esclarecido como se chegou ao valor anunciado de 1,4% de
bicicletas a circular em Lisboa em 2017, o que nos impede de saber até que
ponto podemos interpretar este número e compará-lo com os 0,2% obtidos através
dos Censos 2011. Se a metodologia aplicada tiver sido a mesma, este aumento significa
que em 6 anos o número de ciclistas cresceu 6 vezes e, como se trata de uma
repartição modal, terá também ganho quota de mercado em relação a outros modos
de transporte durante esse período.
Se a
metodologia adoptada tiver sido outra, o valor de 1,4% pode mesmo estar mais
próximo da realidade de 2017 do que os 0,2% estavam do contexto de 2011, algo
que só será possível confirmar quando forem conhecidas as opções tomadas nessa
pesquisa e em que momento esse trabalho foi realizado.
Outro
aspecto a ter em conta é a diferença entre percentagem (número relativo) e o número
absoluto de bicicletas que circulam numa cidade, porque não basta haver mais
ciclistas para alterar a repartição modal – é preciso que haja mais em
comparação com os outros modos de transporte. Por exemplo, sempre que há crescimento
económico geram-se mais viagens diariamente, como as deslocações para o
trabalho que aumentam quando a taxa de desemprego diminui (o que é uma
diferença relevante entre 2011 e 2017), e isso faz com que todos os transportes
tenham maior utilização.
Sendo
bastante provável que o número absoluto tenha aumentado em todos os modos de
transporte nos últimos 6 anos, por via do crescimento económico, a questão
fulcral é então perceber em qual deles mais cresceu e como é que esse
crescimento afectou a distribuição modal como um todo mas, no limite, pode
dar-se o caso de haver mais ciclistas sem que haja menos automóveis a circular, menos passageiros nos transportes colectivos ou menos motas e peões.
Comparar as metas de
Lisboa com outras cidades
Já
os números avançados pela CML para 2020 e 2025, que pretende atingir 7% e 15%
respectivamente na quota modal das bicicletas, parecem muito optimistas quando
comparados com as metas de outras cidades.
Na
mesma sessão em que foram apresentados estes valores, esteve também presente um
representante da cidade de Nantes, França, anfitriã do Velo-city 2015. Esta
cidade, cuja população da área metropolitana se assemelha à do concelho de
Lisboa, tem actualmente 3% de quota modal nas bicicletas e 6% quando se
considera apenas a zona central. Para 2030, o objectivo de Nantes é atingir os
12%. Ou seja, a sexta maior cidade francesa parte de um nível superior ao de
Lisboa, pretende crescer de uma forma mais modesta e num prazo mais alargado do
que a CML se propõe.
A
European Cyclists’ Federation (ECF) disponibiliza no seu site exemplos de 70 cidades com metas já definidas para o crescimento do
uso da bicicleta, o que permite situar a ambição da CML num contexto global. A
metodologia de contagem poderá ser diferente em cada caso e dependerá também do
investimento feito na recolha dos dados, mas são raras as cidades listadas que apresentam
metas de crescimento tão grandes como Lisboa.
Lisboa não consta da lista de 70 cidades elaborada pela ECF |
Londres,
que em 2011 registava 2% de bicicletas, pretende atingir 5% até 2026, o que
representa 2,5 vezes mais ciclistas em 15 anos. A meta de Paris é chegar aos
15% em 2020, três vezes mais do que os 5% registados em 2015. As cidades espanholas
de Granada e Málaga tinham em 2011 um valor semelhante a Lisboa – 0,4% – e
querem ambas obter 15% até 2020, o que significa 37,5 vezes mais bicicletas em
circulação.
Lisboa
propõe-se crescer 75 vezes entre 2011 e 2025, passando de 0,2% para 15% de
bicicletas. O que este crescimento significa é que, por cada um dos ciclistas
contabilizados nos Censos de 2011, terá que haver 75 novos ciclistas. É
basicamente transformar cada ciclista num pelotão. Se partirmos do valor de
1,4% que foi apresentado para 2017, o crescimento nos próximos 8 anos terá que
ser de 10,7 novos ciclistas por cada ciclista actual.
Para
que este crescimento se verifique no tempo proposto, Lisboa terá que se
transformar de forma radical e contar ainda com a adesão da população a um novo
meio de transporte. Estas mudanças são habitualmente lentas como prova a
experiência de outras cidades, onde não bastou implementar uma rede de
ciclovias, um sistema de bicicletas partilhadas e estacionamento para que se
atingissem valores na ordem dos 15%. Estas medidas, que são actualmente a
aposta da CML, contribuirão sem dúvida para que haja mais ciclistas na cidade,
resta saber quantos serão e que modos de transporte perderão utilizadores.