Texto originalmente publicado na revista B - Cultura da Bicicleta nº7, de Junho 2013.
Ponte móvel em Roterdão, Holanda |
Estudante, vem devagar
Uma história sobre como voltar de Erasmus sem dar por isso, atravessando a Europa de bicicleta.
Uma história sobre como voltar de Erasmus sem dar por isso, atravessando a Europa de bicicleta.
O
programa Erasmus que se popularizou nas últimas décadas tem dado a
jovens universitários a possibilidade de viver até um ano fora do
seu país e desfrutar da vida como se não houvesse ano seguinte.
Filmes como A Residência Espanhola celebrizaram esse período quase
sabático mostrando como é bom, por vezes, estar longe da família e
das redes de proximidade, sentir-se livre e evitar confrontos
constantes com o que é expectável de cada um. O Erasmus vem com
prazo definido, para deixar claro desde o início que a vida louca e
boa não durará para sempre, por mais que se tente prolongá-la um
pouco mais. Foi enquanto tentava adiar o regresso que decidi voltar
da Dinamarca em bicicleta, no verão de 2005. A história que aqui
conto começa no fim desse ano vivido fora e é sobre um regresso
demorado, cheio de pressa de viver.
Depois
de 11 meses passados a absorver informação nova a um ritmo quase
diário, o meu cérebro acabou por se habituar a esse frenesim
e terá achado que seria um desperdício voltar de avião, perdendo a
oportunidade de ver cá em baixo tudo o que existe entre aeroportos.
Atravessar a Europa de bicicleta pareceu-me, então, a solução para
os meus problemas. Havia feito dois anos antes uma travessia
semelhante, aproveitando as vantagens de um outro programa europeu, o
Interrail, e ficara-me a ideia de que a densidade habitacional deste
continente deixava no terreno e na paisagem a sensação de quase
nunca estarmos sozinhos ou isolados, fazendo desta travessia em
solitário algo menor que uma aventura.
Estrada nacional na Dinamarca que segue até à fronteira com a Alemanha |
A Europa não tem o exotismo de outras paragens, sobretudo para um europeu, mas atravessá-la de bicicleta, imbuído num espírito de união fraterna entre nações e povos irmãos, que à época estava muito em voga, transportava em si uma ideia de road trip num contexto que nunca se torna muito distante das nossas referências – tudo tem um termo de comparação relativamente fácil e imediato, tudo se assimila facilmente deixando o viajante disponível para outras aventuras que não esbarrem no primeiro e mais elementar desafio de interpretação cultural. Além disso, um ano passado em Erasmus faz-nos criar uma rede de amigos espalhados pelo continente e esta viagem serviu também para visitá-los nas suas cidades de origem.
Tenho que ser honesto: a viagem não
foi ultra bem planeada, não era isso que procurava naquele momento.
Em vez de rotas cuidadosamente estudadas, locais de dormida e
refeições, o que me apetecia era pegar na bicicleta e voltar para
casa como se voltasse do trabalho. Uma espécie de commuting
mais longo, de 20 dias, com paragens para visitar amigos. Para isso
foi necessário enviar toda a tralha por correio de modo a poder
viajar apenas com o essencial.
Dinamarca
É difícil
dizer que optei por usar a bicicleta que me acompanhou durante todo o
ano, pelo simples facto de nunca ter considerado outra possibilidade.
Eu não deixava de ser um estudante com limitações orçamentais num
país de preços altos e o meu veículo, comprado em segunda-mão,
não deixava de ser uma bicicleta de supermercado, que lá são
melhores do que as de cá, embora conservem o estatuto de opção
barata e de gama baixíssima.
As hesitações fizeram-me partir às
quatro e meia da tarde. Deixei a residência em Aarhus onde vivi
durante o ano anterior com destino a Kolding, onde ficaria em casa de
um amigo. Arrancar àquela hora tardia obrigou-me a gerir muito bem o
tempo e o esforço para evitar chegar de noite, muito embora o céu
não escureça totalmente no verão dinamarquês durante as breves
horas em que o sol se desloca abaixo da linha do horizonte. É assim
que se cura a ressaca dos invernos longos naquele país, com horas de
sol abundantes no verão, sem estores nas janelas, muitas vezes
apenas com cortinas brancas, e
acordando ao som do chilrear dos pássaros às três e meia da
manhã, o que ganhava contornos mais irritantes que bucólicos quando
isso coincidia com a hora a que me deitava.
Até à fronteira com a Alemanha segui
pelo caminho mais directo, a estrada nacional, onde quase sempre
existe sinalização para ciclistas e uma berma larga para circular.
A alternativa, mais bonita, era uma das ciclovias integradas na rede
nacional daquele país que atravessam a paisagem por zonas onde a
civilização, embora nunca longe, não invade o nosso campo de visão
de forma tão constante. A Dinamarca é conhecida por ser um país
plano, o que na realidade se traduz como sendo uma espécie de
Alentejo, ou um constante subir e descer ligeiros que evitam a
monotonia.
Sente-se a cada esquina, em cada
serviço e apoio prestado ao viajante, que a Alemanha é um país de
gente habituada a viajar. No Reisezentren, um balcão que
existe em todas as estações de comboios, ninguém estranhou quando
pedi para comprar um bilhete até Emden com paragem em Bremen, onde
planeava passar umas horas para conhecer a cidade. Viajar com uma
bicicleta permite-nos chegar a qualquer sítio e conhecê-lo de uma
ponta à outra em poucas horas, essa foi uma das descobertas que fiz
neste regresso a casa.
Emden fica numa região fértil próxima
da fronteira com a Holanda, junto ao golfo do Dollart, onde os
caminhos agrícolas, feitos com placas de betão armado, estão
integrados em rotas cicláveis com infografia disponível num mapa
dedicado ao cicloturismo, à venda numa livraria perto de si.
Ciclistas e ovelhas cruzam-se num caminho agrícola junto à baía de Dollart, Alemanha |
Holanda
A próxima vez que alguém falar na
Holanda como um país perfeito para andar de bicicleta, lembre-se
disto: fazer muitos quilómetros numa paisagem plana é absolutamente
fastidioso. Tal como me disse uma amiga húngara que fez Erasmus em
Lisboa, “agora que voltei a Budapeste percebi que aqui tenho de
estar sempre a pedalar”. Pois é, as colinas também descem.
Disseram-me que a costa holandesa é bonita, mas atenção, o caminho
que segui não era feio, apenas plano. Qualquer vantagem que se
associe a um chão plano fica sem efeito perante um vento frontal, é
como subir uma montanha sem as vantagens de ver a vista lá em cima.
Em Roterdão encontrei-me com amigos de
Lisboa que estavam a fazer um curso de verão e, apesar de sermos da
mesma cidade, naquele momento vínhamos de cantos opostos da Europa.
É difícil a um português, quando sai do rectângulo por algum
tempo, disfarçar o sentimento emigrante que exalta dentro de si,
apelando à cultura popular da diáspora. Foi com eles que conheci a
canção de Graciano Saga que inspirou o título deste artigo, “Vem
Devagar Emigrante”, a história de um regresso a Portugal que acaba
em tragédia numa estrada de Espanha servia-nos de mote jocoso à
experiência de estar fora do país. A Holanda é tão perfeita que chateia, até a natureza foi domesticada. Nada como uma canção dissonante para lhe dar harmonia.
Ferry-boat que atravessa a baía do Dollart, na fronteira entre a Alemanha e Holanda |
Bélgica
Segui para Antuérpia, a cerca de 100
km de Roterdão, atravessando várias vezes a fronteira em
Baarle-Nassau, um município onde a linha imaginária que separa as
duas nações não é uma recta saída do Romantismo mas sim o
resultado de vários tratados medievais que criaram enclaves belgas e
holandeses dentro da fronteira maior entre os países. Vale a pena
espreitar a história do local. De resto, atravessei a Bélgica com
pressa de chegar à cidade francesa de Lille no 14 de Julho, grosso modo, o 25 de Abril da França.
Fronteira entre a Bélgica e a Holanda em ciclovia |
França
A partir daqui comecei a usar a
bicicleta apenas para conhecer as cidades onde fui parando. O país é
grande e os problemas mecânicos começavam a surgir. Em 2005, as
carruagens dedicadas para transporte de bicicletas nos comboios
franceses ainda eram novidade, pelo que aproveitei para experimentar
o serviço. Sabia também que essa facilidade desapareceria assim que
atravessasse os Pirenéus.
Cidade de Gent, na Bélgica |
Espanha
A minha bicicleta
cruzou a Europa, levou-me a conhecer Barcelona em poucas horas e
depois foi roubada. Um triste final que, contudo, resolveu o problema
que seria transportá-la de comboio até Lisboa, implicando desmontar
e guardá-la num saco próprio para transporte, que não tinha. A
canção de Graciano Saga cumpriu-se uma vez mais, a tragédia
aconteceu a um português em trânsito numa cidade espanhola e com
ela foi-se a esperança de trazer aquela bicicleta para Lisboa.
1 comentário:
Mt obg pela reportagem ... acho muito coragem (e tb inspirativo) fazer touring com aquela bicicleta!
Cumprimentos!
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