Este artigo faz parte de um conjunto de textos sobre as Ecopistas de Portugal – projecto para o desenvolvimento de caminhos para bicicletas e peões através do aproveitamento de linhas ferroviárias desactivadas – servindo como base para uma análise mais aprofundada do potencial destas infraestruturas. Discute-se o seu uso do ponto de vista da bicicleta e não ferroviário.
Casas, campos agrícolas e um acesso privilegiado |
Chegando à estação de comboios de Guimarães, esperava encontrar algum vestígio da linha que até 1986 dali partia em direcção a Fafe. A estação fora entretanto substituída por uma nova, construída mais à frente, terminando agora numa parede de betão atrás da qual um parque de estacionamento automóvel e uma rotunda separam a moderna infra-estrutura de um terreno verde de erva pujante, onde só a ausência de edifícios deixa imaginar que por ali, em tempos, terá passado um comboio.
A
Ecopista de Guimarães faz parte do Plano Nacional de Ecopistas criado em 2001
pela então REFER Património, gestora da rede ferroviária, agora denominada IP
Património. O plano foi criado “tendo em vista a requalificação e reutilização
das linhas e canais ferroviários sem exploração”, pode ler-se no site da
empresa, onde o trajecto entre Guimarães e Fafe é anunciado como parcialmente
concluído – de um total de 21 quilómetros, pouco mais de 14 estão finalizados.
Entrada pelas traseiras
No
posto de turismo da cidade que foi a primeira capital do país explica-se como
chegar ao local onde a via começa. Os mapas disponíveis para oferecer aos
visitantes estão circunscritos a uma zona mais central da cidade e o guia
precisou de recorrer a um exercício de imaginação para me ilustrar o que
faltava do caminho. Perguntei o que tinha acontecido à parte da linha que saía
da estação e atravessava a cidade antes de começar a subida à Penha. “Já não
existe”, foi a resposta dada num tom simpático, como é tudo aqui.
A
Penha é o nome do monte que os primeiros quatro quilómetros de linha
serpenteavam para alcançar o seu topo, cerca de 150 metros acima da estação, deixando para trás a cidade e, ao mesmo
tempo, proporcionando uma vista panorâmica sobre ela. Um artigo publicado na revista Ilustração Portugueza aquando da inauguração da linha em 1907, dá conta
do que se podia observar à época:
Sae esta nova linha da estação de Guimarães agarrando-se ao magestoso monte da Penha, encimado com a estatua de Pio IX e um pittoresco hotel, e, durante quatro kilometros, sempre subindo, vae-nos mostrando soberbos panoramas que se estendem desde a cidade de Guimarães até às alturas do Sameiro. Rodeado um contraforte do monte da Penha, entra-se então no extensissimo valle de S. Torquato.
Hoje,
este troço do percurso faz-se por uma alternativa menos sonante, a antiga
Estrada Nacional 101, que foi transformada nas ruas Padre António Caldas e da
Cruz da Argola depois de construída a sua variante. Tem a vantagem de encurtar
a distância e os senões de ser mais íngreme e de ter trânsito motorizado pouco
afeito à partilha com ciclistas. A vista até pode ser boa mas a falta de
sinalização que indique o início da ecopista e o movimento rodoviário constante
convidam pouco à contemplação. A primeira indicação da “pista de cicloturismo”
aparece somente para assinalar a saída desta estrada, voltando a surgir a
partir daqui sempre que é necessário mudar de direcção. Quando em recta, mesmo
passando por rotundas e outras junções, não há qualquer placa indicativa, o que
só aumenta a ansiedade do ciclista durante a subida... ter-me-ei enganado no
caminho?
É
nas traseiras de uma fábrica do sector têxtil que se entra na ecopista,
assinalada com um pórtico metálico de dimensão um tanto ou quanto exagerada,
como que tentando devolver o prestígio a algo importante, sem dúvida, que porém
se esconde nas traseiras de uma fábrica. Rapidamente se esquece tudo isto
quando se olha para o vale que preenche a paisagem à esquerda.
Chamar-lhe “pista” adequa-se, mas não devia
A
construção desta linha de comboio tornou-se viável financeiramente após uma
revisão do traçado que permitiu eliminar dois túneis inicialmente previstos. O
plano nunca concretizado era, a partir de Fafe, fazer a ligação com as linhas
do Tâmega e do Corgo, aproximando o Minho e Trás-os-Montes, até à cidade de
Chaves.
Após
o encerramento do serviço ferroviário, a Câmara Municipal de Fafe foi a
primeira a converter o canal em pista de cicloturismo, como lhe chamam na placa
que assinala a sua inauguração em 1996. Seguiu-se-lhe o município de Guimarães,
três anos depois, que a completou até ao local onde ainda hoje principia.
Em
bom estado de conservação está o asfalto, que é acompanhado por uma linha
branca que percorre todo o trajecto, um traço continuo que dificilmente cumpre
a função de proibir a transposição da via de circulação porque, numa faixa com
estas características, tal regra é desnecessária e até contraditória desde logo
porque é partilhada por ciclistas e peões, recomendando ultrapassagens com
alguma distância lateral. Uma despesa em tinta que poderia ser poupada sem que
a segurança dos utilizadores fosse afectada.
Nalguns
troços vemos rails de protecção lateral iguais aos das autoestradas, estes sim
uma ameaça à segurança dos ciclistas. O que é bom para os automobilistas, como
estes são, pode transmitir uma falsa sensação de segurança a quem tem o corpo
exposto em caso de embate ou queda e estes rails, que deveriam ser almofadas,
são antes facas sem gume.
Rail de protecção lateral e pórtico |
Cruzamento com uma estrada |
Um trabalho realizado pela Universidade do Minho em 2001 aponta todos estes pormenores, colocando
a tónica na segurança dos ciclistas e na sua fruição do percurso – aspectos que
se interligam, obtendo-se um por via do outro. No artigo são referidas medidas
que permitiriam transformar este canal num verdadeiro corredor verde, o que,
apesar de algumas melhorias, ainda está por concretizar. Percebe-se que a
escolha das protecções laterais teve como principal preocupação impedir o
acesso de veículos motorizados à ecopista mas, conspicuamente, todos os
equipamentos obedecem a uma linguagem rodoviária e não de ciclovia, como também
é notado nesta passagem:
Estes elementos estruturantes (...) não devem reflectir o aspecto, dimensões, ou tipo de material usados standardizadamente nas estradas. Deve-se implementar uma imagem própria à ciclovia (...). A título de exemplo, as velocidades inerentes a velocípedes justificam sinais de menores dimensões, que não têm que ser de tão rápida percepção como a sinalização de estrada.
Tudo isto se torna pouco importante quando se olha em volta a vista imensa. É, todavia, justamente esse o motivo que deve orientar a escolha de soluções, permitindo uma distracção segura e desejável em vez de iludir na segurança ou fantasiar com estradas como as dos automóveis, como se as vias para bicicletas fossem uma brincadeira infanto-juvenil. Nunca foram.
O que pode ser melhorado
A
remeter para algum outro imaginário que não o de uma via para ciclistas e
peões, a ecopista deverá valorizar o património ferroviário e relembrar ao
viajante a história deste canal e o porquê dele existir. Dificilmente se
cortariam montanhas e fariam taludes, túneis e pontes como aqui se fosse para
criar de raiz um corredor verde. Esta via e o seu suave declive existem porque em
tempos passaram por aqui comboios fumegantes.
Ciclovia do Parque da Cidade, Fafe |
Do
lado de Guimarães, duas opções estratégicas: prolongar a pista até à estação de
comboios pelo troço original e, enquanto isso não é feito, melhorar a
sinalização a partir do centro da cidade. Vamos por partes.
A
primeira impressão com que se fica, olhando para o edificado, é que o canal
ferroviário foi ocupado pela expansão urbana, o que também é sugerido pela
demolição de um antigo apeadeiro nesta zona. Felizmente, olhando atentamente
para a vista de satélite e confrontando-a com um antigo mapa, percebe-se que o
corredor permanece livre, nuns casos abandonado às ervas, noutros transformado
em arruamentos, como é o caso da Avenida Rio de Janeiro. A engenharia do início
do século XX tem tudo para poder voltar ao serviço, proporcionando agora uma suave
subida aos ciclistas.
O troço entre a estação e o início da ecopista em Guimarães, a tracejado. Fonte |
De
acordo com as normas de sinalização vertical, uma placa cor-de-laranja, como a que
indica a pista de cicloturismo, refere-se a equipamentos desportivos e estes,
normalmente, existem num lugar concreto, como um hipódromo, um autódromo ou um
ringue de patinagem. Contrariamente a esses equipamentos, esta pista de
cicloturismo une duas cidades por meio de uma via sem tráfego motorizado e isso
deveria estar inscrito na sinalética, com outra cor de fundo e, sobretudo, contendo
a informação da localidade para onde segue e a respectiva distância, fundamental
para quem se desloca de bicicleta.
Enquanto esta pista for tratada como um equipamento
desportivo e não como uma via de circulação, ficará por explorar o potencial
turístico e patrimonial que a Ecopista Guimarães – Fafe em si contém. Ligá-la à
estação de comboios trará mais visitantes, desde que devidamente anunciada e
sinalizada, na estrada e nos mapas. Continuá-la de Fafe até Chaves, através de
um corredor verde, deve ser visto como um investimento estratégico e o corolário
de uma ideia com mais de 100 anos.
A última viagem do comboio
A ecopista actualmente
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